Estante de livros
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Foto de Ashim D’Silva na Unsplash |
Tem muito tempo que eu tenho tido vontade de arrumar a biblioteca do meu pai. Há muitos anos organizamos tudo, eu tentei catalogar os livros como em uma biblioteca 'de verdade', com aplicativo e tal, pra ele não perder mais a conta de qual livro está com quem. Minha mãe e ele organizaram por categoria e, dentro das categorias, por ordem alfabética. Então um dia cheguei no cômodo e ele estava mexendo nos livros, estava virando alguns colocando por cima dos que ficavam em pé, empilhando outros, de forma aleatória. Meu TOC falou mais alto: "Pai! O que você está fazendo? Estava tudo organizado e você está tirando tudo de ordem". Ele respondeu que não, que estava tudo certo, que ele estava vendo algumas estantes de livros de grandes escritores e jornalistas e observou que "a biblioteca de quem lê muito é desorganizada mesmo". Bom, ele ainda tinha saúde mental, ainda estava trabalhando e escrevendo as matérias, editando revista e reclamando de palavras e termos errados dos radialistas... então eu acreditei que aquilo era uma expressão dele, como adolescente que enche o quarto de adesivos e pôsteres.
Ele realmente passava o dia lá, pois era seu escritório, seu refúgio, a porta tem até uma placa indicando que aquele cômodo pertence a ele. É uma brincadeira que ele mesmo fez "The Hart's News". É Hart mesmo. Ele se referia a ele mesmo como Papy Hart, não lembro exatamente o motivo. De vez em quando ele imprimia uma folha com uma 'matéria' do The Hart's e deixava pela casa, geralmente era uma notícia do gato que foi encontrado em um lugar aleatório, ou de como a conta de água estava mais cara, tudo em tom de brincadeira. Meio ácido, meio jocoso.
Enquanto fui organizando os livros fui lembrando do meu pai. Era como se ao desempilhar e colocá-los de pé, eu estivesse também organizando os pensamentos dele e os pensamentos que eu tinha sobre ele. Ele ainda está vivo, mas não é mais ele, é apenas parte dele. Não sei quem é meu pai sem estar com um livro na mão, ou sem estar criticando uma notícia, comentando um fato político, corrigindo uma concordância verbal ou o cacoete dos novos jornalistas. Eu sei, na verdade, pois quando percebi que ele não estaria mais aqui, passei a conversar mais com ele e extrair mais do que ele pensava sobre uma coisa ou outra e hoje eu não consigo mais conversar como fazia há três anos. Percebi também que a des-organização da biblioteca era só um reflexo do que estava acontecendo na cabeça dele. As informações estavam sendo empilhadas, trocadas de lugar, estavam se perdendo. Se fosse há 10 anos, eu mexendo ali, ele estaria do meu lado, não deixaria eu mexer em um livro sem a supervisão dele. Hoje ele veio guardar uns dez e eu falei para ele deixar sobre a mesa que eu iria organizar. Ele deixou sete, outros três ele empilhou, como fazia. Um pouco pra mostrar que aquele território, ainda é dele.
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